Faço notar que eu, neste sonho, era mero
observador distante, como quem assiste um filme ou lê um conto, sem qualquer
investimento pessoal no destino dos personagens. E deixo aberto o
questionamento, quem pode dizer com indubitável precisão que o que é sonho não
é também visão?
Fato é que, por razões não nos dadas a conhecer,
veio a falecer o herói do nosso sonho, que levará o nome de Pária, somente
dando conta de si do outro lado da vida.
Tão logo despertou, puseram-no portão a dentro, dizendo: “agora és habitante
perene do paraíso, sê bem-vindo ao infinito segundo seu coração”.
Pária, curioso, observava sua
circunvizinhança com a atenção de um recém nato que abre pela primeira vez os
olhos. Notou contentado, que tudo quanto desejasse manifestava- se
miraculosamente perante si. Diante de guarnições infindáveis, de um sabor ao
mesmo tempo nostálgico e desconhecido, percebeu-se cercado por companhias que
julgou irrepreensíveis no proceder, na aparência e no falar.
Mesmo a temperatura nunca fugia daquela
por ele considerada ideal... Se porventura queria sombra, mal o id formulava o
desejo, materializavam-se palmeira e rede, dignas do próprio ócio grego. Se era
sol a lhe faltar, as nuvens do céu logo saíam do rumo, como a estender um
tapete azul celeste, por onde pudessem desfilar os fótons solares.
Contemplativo e maravilhado com tudo
aquilo, Pária viu que se aproximava um companheiro residente. E observou que o
microcosmos circundante do estranho seguia um molde muito próprio. De modo que
concluiu que os mesmos miraculosos eventos que notava ao seu redor, eram
ofertados também ao colega.
Começou a entender que aquele lugar tinha como únicos arquitetos os seus
próprios residentes e que qualquer serviço podia ser refeito pelo próximo
projetista. Não obstante, participou da que julgou ser a conversa mais
agradável que tivera, até onde lhe acompanhava a memória. Riram juntos,
filosofaram sobre o lugar, meditaram sobre os caminhos que ali os conduziram,
celebraram. “Sujeito coerente, eloquente sem pernosticismo, desses raros que
não falam besteira”, pensou consigo.
Conheceu outras pessoas, todas muito parecidas com o primeiro amigo. Gente
muito fácil de concordar. Gente muito amena às posições dele, mesmo aquelas
mais polêmicas. Não encontrou naquele dia, alguém com quem tivesse
desavença. “Quanta gente tão perfeita, que lugar
mais selecionado”.
Pária, porém, tinha um defeito capital,
era um indivíduo tremendamente competitivo. Eis que ao participar de mais um
banquete, cumprimentando os comensais, recorda-se de
notar que um dos presentes era mais esbelto que ele
próprio e desejou, quase subconscientemente, que seu porte físico fosse melhor
que o daquele.
Dispensou a linha de raciocínio e foi se divertir. Fartou-se, dançou e riu.
Satisfeito, foi se despedir de todos, posto que queria repousar. Nesse
momento, ao passar pelo atleta, teve a vívida impressão de que a vestimenta do
conviva havia se tornado um tanto mais justa, sendo visível uma modesta
protuberância abdominal. “Será que... não, bobagem. Certamente consumiu todo o
salmão e canapés que podia conter e está aí o resultado”.
Algum tempo se passou, esqueceu-se do evento. Vinha em sua direção
uma moça de aparência transtornada. Pensou consigo que não estava
interessado em aborrecimentos, mas também não tinha vontade de abandonar seu
espaço, esperou que chegasse. Todavia, se viu equivocado, pois
ao se aproximar a
moça tinha semblante
tranquilo e sereno. Cumprimentou-lhe e
seguiu seu caminho.
Começou a pensar em todas as pessoas perfeitas dali. De pensamento alinhado, de
ideias fortes, drásticas, mas sempre coerentes. Tão eloquentes, que ele mesmo
se via inesperadamente concordando, sem qualquer ressalva, com pensamentos que
em vida julgava absurdos. Como pudera ter sido tão obtuso, quando a verdade
sobre tais polêmicas era tão clara?
Foi então que se deu conta. Ergueu a cabeça. Em meio à população perfeita e
sincrônica, despontavam vez ou outra, à distância, aparentes faces de angústia
ou ansiedade, mas cuja imagem inicial gradualmente dava lugar a semblantes
pacíficos e até sorridentes, conforme se aproximavam de outras pessoas,
aninhadas contentes em seus oásis pessoais.
Percebeu, então, o segredo fundamental daquele lugar. As pessoas eram tão
plásticas e maleáveis quanto a própria realidade circundante. E a cada
encontro, não apenas Pária era menos do homem que foi ao chegar, como ele mesmo
furtava a essência alheia, inadvertidamente.
Não demorou para que passasse a demonstrar
o mesmo semblante angustiado que vislumbrara em outros. E com a mesma presteza
que suprimira a moça triste, tinha a própria clareza sufocada de forma
inadvertida por uma serenidade artificial, imputada por outro incauto novato,
ainda regozijado pela própria ignorância.
E assim seguia a eternidade de Pária, em um tormento mudo e quase surdo,
intercalando momentos de terror absoluto com outros de profunda anestesia, que
iam pouco a pouco fragmentando seu espírito e sua identidade.
Vivenciou um plural de assombrosas eternidades, até que eventualmente teve
tempo suficiente em seu sofrimento, para desejar desaparecer para sempre do
contato humano. Viu-se então isolado, cercado por uma fortaleza deserta.
Sozinho, desmemoriado, desorientado. Lembrava pouco mais que o próprio
nome, Pária. Tão mais que mera designação, uma premonição.
Despertei do sonho, mas garanto que é assim que termina, infinita, a história
de Pária do Purgatório. Condenado a conhecer apenas duas coisas, o tormento de
seu ostracismo auto infligido e a desconstrução constante das almas ao seu
redor.