terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Um sonho

Faço notar que eu, neste sonho, era mero observador distante, como quem assiste um filme ou lê um conto, sem qualquer investimento pessoal no destino dos personagens. E deixo aberto o questionamento, quem pode dizer com indubitável precisão que o que é sonho não é também visão?

Fato é que, por razões não nos dadas a conhecer, veio a falecer o herói do nosso sonho, que levará o nome de Pária, somente dando conta de si do outro lado da vida.

Tão logo despertou, puseram-no portão a dentro, dizendo: “agora és habitante perene do paraíso, sê bem-vindo ao infinito segundo seu coração”.

Pária, curioso, observava sua circunvizinhança com a atenção de um recém nato que abre pela primeira vez os olhos.  Notou contentado, que tudo quanto desejasse manifestava- se miraculosamente perante si. Diante de guarnições infindáveis, de um sabor ao mesmo tempo nostálgico e desconhecido, percebeu-se cercado por companhias que julgou irrepreensíveis no proceder, na aparência e no falar.

Mesmo a temperatura nunca fugia daquela por ele considerada ideal... Se porventura queria sombra, mal o id formulava o desejo, materializavam-se palmeira e rede, dignas do próprio ócio grego. Se era sol a lhe faltar, as nuvens do céu logo saíam do rumo, como a estender um tapete azul celeste, por onde pudessem desfilar os fótons solares.

Contemplativo e maravilhado com tudo aquilo, Pária viu que se aproximava um companheiro residente. E observou que o microcosmos circundante do estranho seguia um molde muito próprio. De modo que concluiu que os mesmos miraculosos eventos que notava ao seu redor, eram ofertados também ao colega.

Começou a entender que aquele lugar tinha como únicos arquitetos os seus próprios residentes e que qualquer serviço podia ser refeito pelo próximo projetista. Não obstante, participou da que julgou ser a conversa mais agradável que tivera, até onde lhe acompanhava a memória. Riram juntos, filosofaram sobre o lugar, meditaram sobre os caminhos que ali os conduziram, celebraram. “Sujeito coerente, eloquente sem pernosticismo, desses raros que não falam besteira”, pensou consigo.

Conheceu outras pessoas, todas muito parecidas com o primeiro amigo. Gente muito fácil de concordar. Gente muito amena às posições dele, mesmo aquelas mais polêmicas. Não encontrou naquele dia, alguém com quem tivesse desavença.  “Quanta gente tão perfeita, que lugar mais selecionado”.

Pária, porém, tinha um defeito capital, era um indivíduo tremendamente competitivo. Eis que ao participar de mais um banquete, cumprimentando os comensais, recorda-se de notar que um dos presentes era mais esbelto que ele próprio e desejou, quase subconscientemente, que seu porte físico fosse melhor que o daquele.

Dispensou a linha de raciocínio e foi se divertir. Fartou-se, dançou e riu. Satisfeito, foi se despedir de todos, posto que queria repousar.  Nesse momento, ao passar pelo atleta, teve a vívida impressão de que a vestimenta do conviva havia se tornado um tanto mais justa, sendo visível uma modesta protuberância abdominal. “Será que... não, bobagem. Certamente consumiu todo o salmão e canapés que podia conter e está aí o resultado”.

Algum tempo se passou, esqueceu-se do evento.  Vinha em sua direção uma  moça de aparência transtornada. Pensou consigo que não estava interessado em aborrecimentos, mas também não tinha vontade de abandonar seu espaço, esperou que chegasse. Todavia, se viu equivocado, pois   ao   se   aproximar   a   moça   tinha   semblante   tranquilo    e    sereno. Cumprimentou-lhe e seguiu seu caminho.

Começou a pensar em todas as pessoas perfeitas dali. De pensamento alinhado, de ideias fortes, drásticas, mas sempre coerentes. Tão eloquentes, que ele mesmo se via inesperadamente concordando, sem qualquer ressalva, com pensamentos que em vida julgava absurdos. Como pudera ter sido tão obtuso, quando a verdade sobre tais polêmicas era tão clara?

Foi então que se deu conta. Ergueu a cabeça. Em meio à população perfeita e sincrônica, despontavam vez ou outra, à distância, aparentes faces de angústia ou ansiedade, mas cuja imagem inicial gradualmente dava lugar a semblantes pacíficos e até sorridentes, conforme se aproximavam de outras pessoas, aninhadas contentes em seus oásis pessoais.

Percebeu, então, o segredo fundamental daquele lugar. As pessoas eram tão plásticas e maleáveis quanto a própria realidade circundante. E a cada encontro, não apenas Pária era menos do homem que foi ao chegar, como ele mesmo furtava a essência alheia, inadvertidamente.

Não demorou para que passasse a demonstrar o mesmo semblante angustiado que vislumbrara em outros. E com a mesma presteza que suprimira a moça triste, tinha a própria clareza sufocada de forma inadvertida por uma serenidade artificial, imputada por outro incauto novato, ainda regozijado pela própria ignorância.

E assim seguia a eternidade de Pária, em um tormento mudo e quase surdo, intercalando momentos de terror absoluto com outros de profunda anestesia, que iam pouco a pouco fragmentando seu espírito e sua identidade.

Vivenciou um plural de assombrosas eternidades, até que eventualmente teve tempo suficiente em seu sofrimento, para desejar desaparecer para sempre do contato humano.  Viu-se então isolado, cercado por uma fortaleza deserta. Sozinho, desmemoriado, desorientado. Lembrava pouco mais que o próprio nome, Pária. Tão mais que mera designação, uma premonição.

Despertei do sonho, mas garanto que é assim que termina, infinita, a história de Pária do Purgatório. Condenado a conhecer apenas duas coisas, o tormento de seu ostracismo auto infligido e a desconstrução constante das almas ao seu redor.





sábado, 23 de maio de 2015

Sentir com precisão cirúrgica e uma frieza matemática (um desabafo):

"Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás."

Ignorando a maior parte da história por trás do autor da frase, lembremo-nos apenas de que era, entre outras coisas, um profissional de saúde. De minha parte, surpreendo-me, relembrando tais palavras com cada vez  mais frequência.

As coisas que tenho visto nestes poucos dias de hospital, as dores que tenho presenciado, ferem também do lado de dentro do jaleco.

Quem dera fosse suficiente reconhecer a existência do sofrimento e partir para a cura. Infelizmente não... Afim de intervir sou forçado a mergulhar integralmente em cada trauma; devo estimular o paciente a relembrar e reviver cada detalhe excruciante de sua condição, muitas vezes experimentando uma parcela dessa dor, na tentativa de definir com precisão o que se passa e tentar, apenas tentar, amenizar a situação.

E há vezes, mais do que poucas vezes, em que isso não basta. 

Corta o coração ver aquele paciente já tão maltratado pela doença que perdeu a força e a vontade de lutar. Ou aquele outro, no qual o próprio tratamento causa tal sofrimento que o indivíduo prefere recusar a intervenção e esperar a doença seguir seu curso.

É inevitável conhecer pessoas fadadas a passar seus últimos dias nesse ambiente desconhecido e inóspito, paradoxalmente chamado de hospital, sem ser tomado pela sensação da impotência. Sem tremer um pouco diante de nossa própria mortalidade e sem imaginar os caminhos que traçaram, as pessoas que tocaram.

Me assombram, durante a noite, aqueles olhares recebidos ao caminhar pelo hospital. São olhos suplicantes, mais ou menos esperançosos, que torcem para que o rapaz de estetoscópio no pescoço possa lhes oferecer alguma salvação, algum alívio, muitas vezes longe de meu pequeno alcance.

Assusta-me, em especial, a realização de que é preciso endurecer o coração para sobreviver a estes embates diários. Que é permitido se compadecer, mas não muito, pois é preciso dormir à noite. É permitido oferecer calor e empatia, mas em doses matematicamente calculadas, pois é preciso ser feliz nos intervalos. 

Paradoxalmente, é preciso sentir sem espontaneidade, deixar escapar apenas o suficiente de cada emoção. 

Sentir, mas com precisão cirúrgica. Porque não basta tratar do outro, é preciso tratar de si, pois o primeiro não será possível sem o segundo.

segunda-feira, 24 de março de 2014

O primeiro Senhor do Tempo




Como todos sabem, são três os grandes maestros da cronologia.

O Segundo é uma entidade imprevisível, confusa e no entanto, tremendamente influente. Rege a vida alheia tal qual um malabarista, seus movimentos, que de início parecem caóticos e aleatórios, terminam por se mostrar profundamente calculados e precisos.

O Terceiro Senhor é o de maior potencial, espera-se muito deste indivíduo. Havendo interesse, tem poder para mover mar e terra. Sendo que raramente o faz... Age apenas quando enxerga grande determinação em seus asseclas... E se os acha indolentes, nega-se a ter com eles.

Mas basta de devaneios! O assunto do dia não é nem Segundo, nem Terceiro. A entidade de hoje é ninguém menos que o Guardião do Arrependimento e das Glórias, o Passado.

De tudo isso, a verdadeira surpresa é sua simplicidade.

Ora, sendo ele Senhor do Tempo, jamais foi tocado pela pressa dos mortais. Caminha devagar com sua bengala, impassível, um pouco melancólico, mas sereno.

Um observador atento o verá a rastejar por dias. Lento, mas nunca frágil. E então... então some. Quiçá, benevolente, dar-te-á antes uma lembrança, uma carta. E assim nos ludibria a todos.

Moroso, vale-se da bengala para se locomover. Não há, no entanto, um só vivente capaz de acompanhar seu passo. Ao partir, não será jamais alcançado.

Felizes são os donos de cartas, pois convidam o Passado quando querem.

E ele os visita todas as vezes.

sábado, 19 de outubro de 2013



Cuidado com o medo de ser feliz. 
Não há Prozac que chegue pra curar esse transtorno...



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Bônus:

terça-feira, 1 de maio de 2012

Eles andam juntos. Há até quem diga que ele gosta dela…



Eles andam juntos. Há até quem diga que ele gosta dela… 

Será que gosta? Às vezes eu penso que sim. Mas ele é sagaz, desconversa, se faz de bobo, de ingênuo ele não dá a solução, nem ela dá sossego. Ela pergunta, pede prova. Ele provoca, prende o papo. E aqui entre amigos, eu acho é que ela acha um charme a charada desse chapa.

Mas a dúvida tira o sono dela. Ele dorme tranquilo porque sabe que ela é sábia. Mas como ela não sabe que sabe o que sabe, passa as noites confabulando com seu ouvinte, o travesseiro. 

Bom. Mas deixemos de lado os enigmas, não é bom tirar o prazer de adivinhar a prazo. Até porque, com mistério ou sem mistério, eles se entendem. Tanto que quando brigam, é de puro pretexto, pra poder fazer as pazes. E não há birra nesse mundo que custe mais que um beijo para um riso bobo. 

É... Ela gosta dele e, pelo visto, ele gosta dela. Procure espinho em rosa quem quiser, mas é simples assim. C’est la vie, et c’est belle.

Mas nem por isso me confunda com um desses ingênuos apaixonados. Bem sei eu que nem tudo são flores. Não é mesmo fácil assim. Afinal, tem também os poemas, as histórias, os doces e, é claro, o pôr-do-sol!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

#Ficaadica

Pra ser feliz não é preciso ganhar todas, só é preciso aguentar perder e tentar de novo.

Davi Khouri